O segredo do prontuário

É sabido que em qualquer serviço, seja na saúde ou na assistência, que o usuário tem direito ao acesso a seu prontuário.
Tem direito de saber tudo que escrevem ou pensam sobre ele. É comum contudo ver pessoas que suprimem anotações ou sonegam do usuário o acesso à elas justificando que talvez ele não esteja preparado para a suprema verdade que o "técnico" tem sobre ele.
Reconheço que em muitos casos o usuário não tem tantos recursos para digerir tão brutamente "uma verdade" seja por sua fragilidade ou pela complexidade da mesma. E se faz necessario uma habilidade por parte do técnico para poder se colocar, ou construir a partir de onde está o usuário essa "verdade".
Mas existem questões que não podem ser ignoradas.A primeira delas é a relatividade da verdade, do que é verdadeiro para o técnico e o que é a verdade absoluta se é que ela existe.
Lembro-me de um livro da coleção Primeiros Passos, O que é Realidade escrito por João Francisco Duarte Junior, que li no começo da faculdade, e ainda do livro de Rubens Alves, Filosofia da Ciência. Todos eles, assim como as Obras de Kant (Critica a Razão Pura), Santo Agostinho (Confissões) Thomas S. Kuhn ( Estrutura das Revoluções Cientificas) afirmam que não existe uma verdade que seja absoluta, que não seja relativizada pelo ponto de vista de quem a descreve. Assim não se deve dar ao peso de uma anotação uma força maior do que ela realmente tem, ou seja, um ponto de vista, mesmo que baseada por conceitos técnicos, observações sistemáticas etc. Isso não quer dizer que são invalidas, inúteis e não merecem atenção ou crédito, mas seu poder não deve ultrapassar ao poder que realmente tem. Quando sistemáticas, pensadas e muito bem refletidas são aliás muito úteis para aumentar o campo perceptivo da realidade dentro de um padrão cultural e paradigma aceito.
Outra questão importante é o porquê sonegar ao usuário essa informação, se ele quando procura um técnico o que quer na verdade, e precisa é justamente complementar seu entendimento, e forma de intervenção com a realidade. A resposta a essa pergunta leva a uma outra questão: A quem interessa preservar essa informação, ou mante-la em um código técnico inacessível ao usuário a não ser a aquele que quer manter sua relação de poder sobre ele?
Não vou prolongar aqui o que Michel Foucault em Microfísica do Poder descreveu belamente. Mas gostaria de apontar, que se o usuário não pode ver o que você escreve ou pensa sobre ele, com toda certeza existe um sério problema na sua relação com ele!
Dentre esses, a tentativa de manter o poder na relação, o medo de não ser validado pelo usuário, a incapacidade de transformar o seu saber em um saber acessível a aquele que realmente precisa dele, um medo ou insegurança quanto ao feedback do usuário etc.
A experiência de escrever junto com o usuário o prontuário sem duvida é muito rica, legitima e transformadora, tanto para o usuário quanto para o profissional, que a cada atendimento apreende ainda mais como pensar a partir de seu instrumental técnico de acordo com o que o pode realmente ser útil ao usuário. Trata-se de se aproximar do mundo dele não para deixar mais claro os limites, mas ao contrario unir e trocar o que os dois mundos tem de útil um para o outro. Tira o técnico de seu altar e o coloca onde realmente deve estar no "Campo" onde as coisas acontecem no nível psicológico.
Já tive a experiência de, a partir desta pratica de escrever junto as anotações do prontuário, perceber o quão tortas e preconceituosa eram minhas observações, ou então falhas em detalhes que eram para o usuário muito mais importantes que eu supunha, de realmente acrescentar com minha “ciência” a vida de alguém e ter a minha ciência retificada pela vida de alguém.
Quanto ao usuário estar ou não preparado para entrar em contato com essa informação, isso tem muito mais a ver com a capacidade de o técnico estar próximo do usuário e saber falar sua língua a partir de seu referencial do que qualquer outra coisa.

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